Recentemente lendo e ouvindo a repercussão da prisão do CEO do Telegram, Pavel Durov, ouvi uma pessoa dizendo que não existe “total freedom” (liberdade total), que isso é uma utopia atualmente, e isso me levou a refletir sobre esse tema. Vamos a ele.
Liberdade total implicaria eu poder fazer o que quiser na hora que bem entender, sem se preocupar com regras, leis e convenções sociais. Coisas como estacionar o carro no meio de uma avenida (em lugar proibido), pegar arroz no supermercado e sair andando sem pagar, ignorar qualquer fila e até entrar na sua casa sem sua permissão, são exemplos que vem à minha cabeça. Todos requerem que eu tenha liberdade total para fazer o que quiser. Isso só vejo possível em um mundo totalmente individualista e anarquista. Cada um por si.
Para que não cheguemos a esse estado, onde a força bruta vejo como a única forma de defesa da individualidade e da sua liberdade, temos que ter uma sociedade organizada e com regras. E aí a liberdade total realmente já era. Existirão regras, feitas pela sociedade, e que nos limitarão de fazermos o que queremos. Teremos que nos enquadrar nelas para ali estar senão somos passiveis de punição. Prisão, expatriação, excomungaçao, morte, multa são algumas das formas da sociedade se impor sobre o indivíduo e sobre o estado de liberdade total.
Bem, se você chegou até aqui deve estar achando que eu entendo a prisão do Pavel Durov como sendo realmente legitima e necessária. E aqui que a coisa fica mais nebulosa.
Nas últimas décadas, seja por conta da internet, facilidade de locomoção, celulares, mídias sociais, ou qualquer outra inovação que você lembre, houve uma aproximação enorme do mundo e das pessoas. Hoje sabemos em tempo real tudo o que acontece em uma sociedade que fica a milhares de quilômetros de onde moramos, guerras, disputas, erros no break dance das olimpíadas, tremores de terra etc.; tudo sabemos e isso obvio que nos afeta e, por consequência, a sociedade a que pertencemos.
Essa mesma sociedade que é responsável pelas regras, que nós mesmos criamos, para vivermos juntos. O problema é que todos esses fatores, tecnológicos e pessoais, nos afetam de uma forma muito mais rápida do que a capacidade da estrutura organizacional das sociedades acompanhar. Fatores geracionais aqui talvez seja a forma mais fácil para explicar esse ponto. Poucas são as pessoas com menos de 30 anos que estão hoje em posições onde possam mudar algo em termos de regras. A câmara dos deputados do Brasil, por exemplo, tem uma idade média de quase 50 anos e apenas 17 abaixo de 30 anos (3% dos deputados). Isso quer dizer que acho isso errado? Pela média de idade talvez não, já que essa não está muito longe da média de idade da população brasileira (~ 35 anos), mas somente 3% dos deputados abaixo de 30 anos me parece pouco.
Uma sociedade com regras que se atualizem à medida que os valores e necessidades dessa mesma sociedade se alterem é uma sociedade que almejamos, mas em muitos casos essa velocidade é a requerida. E em geral são os mais jovens a pedir mais velocidade.
Bem, voltando ao CEO do Telegram, até onde vi, sua prisão foi por “facilitar” a realização de coisas ilícitas (tráfico de menores, comercio de drogas etc.). Bem, é óbvio que essas atividades são ilícitas e são passiveis de punição, mas a coisa se complica quando a palavra “facilitar” aparece. Ainda mais no contexto de uma plataforma de mensagens como é o telegram. Emprestar dinheiro para alguém comprar droga, revender e depois te devolver com juros me parece óbvio que é um tipo de “facilitação” que deve ser punível. Organizar um megaevento no parque do Ibirapuera aonde algumas pessoas vão lá para vender drogas e você, organizador do evento, ser punido por conta disso? Hum, já me parece mais complicado. Ser punido por ter uma plataforma de mensagens criptografadas nas duas pontas onde você não tem acesso ao que está sendo falado? Mais complicado ainda. Obvio que se houve um pedido judicial anterior para excluir certo grupo ou usuário da plataforma, e isso não foi feito, ele tem que responder por isso, mas simplesmente por ter a plataforma?
Lembro-me de dois casos aqui que vale trazer. O mais recente do X (ex- Twitter) que anunciou a saída do Brasil (da empresa, não vai ter mais CNPJ no Brasil. Para os usuários nada muda), pois assim fica fora do alcance da legislação brasileira e para bloquear qualquer coisa a justiça brasileira teria que requerer isso à justiça da sua base (Estados Unidos, no caso). Se não me engano alguns anos atras o WhatsApp teve um caso similar. Vejo isso como uma artimanha jurídica para dizer que a plataforma respeita somente as regras vigentes nos USA e pronto. Lembra da questão de aproximação das pessoas e mundo que coloquei lá acima. Aqui tem um exemplo bom disso. Tudo ficando mais próximo e daí há uma urgência em que tenhamos regras mais globais também. É certo o Elon ter feito isso? É errado? Ele me parece respaldado pelas regras atuais, mas o que queremos é ser julgados pelas regras dos USA ou pelas que nos, sociedade brasileira, fizemos para nós? A pensar.
O segundo caso é o caso dos mixers no ambiente de cripto. Mixers são ferramentas que fazem com que o tracking das transações seja embaralhado, ou em outras palavras, permite que se mande e receba tokens sem que haja a rastreabilidade. Uma ferramenta de privacidade, que também é utilizada para apagar o rastro de transações escusas. Desde meados de 2022 que tem havido prisões nos USA dos programadores que criaram o código e, por consequência, as plataformas que possibilitaram os mixers. A disponibilização da plataforma para usarem é um fator para essas prisões? Mesmo não tendo controle sobre o que os usuários estão lá fazendo e por quê? Será que deveríamos prender o grupo do Einstein por ter criado a fusão atômica e que deu origem à energia atômica e também à bomba atômica?
Um outro ponto é uma particularidade do que chamamos de liberdade que é a liberdade para falarmos o que quisermos (sem censura). Nos tempos atuais acho que nem isso temos, e tenho dúvidas se deveríamos ter. Tema mega polêmico é onde colocar a régua do que é censura ou não e até onde podemos nos expressar livremente. Aqui me baseio novamente nos controles que a sociedade criou e fico na dúvida se eles estão prontos para os tempos atuais? Nesse momento vem à minha cabeça a frase: uma mentira contada recorrentemente vira verdade! Complexo isso.
Bem, voltando ao ponto sobre liberdade, me parece mesmo utópico vivermos em sociedade com liberdade total. Alguma parte dela temos que abdicar. Minha liberdade termina quando começa a sua. A questão aqui é onde colocar a régua, quem a define e quem a atualiza à medida de que a sociedade se desenvolve. E a atenção se volta ao sistema político atual de todos os países. Deveríamos partir para uma democracia mais direta? Diferente do modelo de democracia representativa que temos na maioria dos países hoje? Tecnologia para isso temos há tempo, mas é isso que queremos? Mais representatividade ajudará nisso? Nos trará mais liberdade?
Pontos para pensarmos juntos.
Abcs,
Gustavo Cunha
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Quando as redes de computadores foram concebidas, elas foram estruturadas em sete camadas. Na época, discutiu-se a possibilidade de criar uma camada específica de segurança, o que permitiria o tráfego de informações pela rede sem qualquer risco de interceptação. No entanto, por questões de segurança militar, essa camada não foi implementada. Atualmente, qualquer comunicação na rede está sujeita à interceptação e rastreamento. Os avanços na criptografia têm buscado mitigar essa vulnerabilidade, mas a liberdade total na Internet é, e sempre foi, uma utopia. Tudo está sendo monitorado e observado.
Por outro lado, temos o Estado e seu sistema de justiça, que nem sempre é infalível. A democracia participativa pode se transformar na ditadura da maioria, que vive dentro de uma utopia ilusória. As garantias de liberdade e privacidade que almejamos talvez sejam, como sempre foram, meras utopias.