*Publicado originalmente na Blocknews em 30-jan-2023
Uma das grandes críticas que sempre ronda a utilização de uma nova tecnologia é o fato de que ela por si não resolve nada, e que é preciso um caso de uso, uma função, em outras palavras uma “dor” para ser resolvida. Blockchain sofre com isso desde que a palavra foi criada. Eu e inúmeros outros entusiastas dessa tecnologia sempre falamos que Blockchain não é uma bala de prata. Não cabe em toda situação e não resolve tudo. Muito pelo contrário, em alguns casos piora o processo e consome um tempo e dinheiro que poderia ser utilizado de uma maneira mais eficiente. Isso não quer dizer que seja inútil, há casos em que ele torna o processo muito melhor, mais seguro, transparente e inclusivo. Mas o ponto aqui é sobre essa ideia e fazermos uma moeda entre a Argentina e o Brasil. E minha análise seguirá o mesmo rito que temos que olhar na implementação de um modelo de negócios.
O primeiro ponto é tentar olhar pelo lado da “dor” que essa moeda comum endereçaria.
Vendo pelo lado do Brasil, a Argentina é um parceiro comercial que vem perdendo relevância nos últimos anos. Em 2022 o saldo do comercio ficou levemente positivo, ~ USD 2,0 bilhões com importações e exportações na casa dos USD 15,0 e USD 17,0 bilhões, respectivamente. Para ser ter uma ideia da magnitude, o Brasil exportou USD 335,0 bilhões e importou USD 272,0 no ano de 2022. Apesar do valor não ser muito significativo, e estar claramente caindo, a Argentina ainda está entre os 5 maiores parceiros comerciais brasileiros, perdendo de longe para China e USA e da Europa se a considerarmos um bloco.
Bem, dito isso, uma moeda comum com um parceiro comercial relevante poderia ajudar em algo? A resposta direta é que depende. Vale aqui analisar o caso do Euro, a principal implementação de uma moeda única entre vários países do mundo. Que dores eles queriam resolver?
A idealização de uma moeda comum na Europa começa no pós-segunda guerra e tem como uma das suas bandeiras uma maior união entre os países, de tal forma que a situação de guerra que ocorreu não se colocasse mais. Os resultados esperados também incluíam uma maior mobilidade de mão de obra, uma equalização de poder de compra entre os países, e um maior comercio intra-comunidade, entre vários outros. Foram décadas de discussão e implementação até chegarmos ao que temos hoje.
Grande parte do financiamento foi feito pelos países mais ricos, notadamente Alemanha, e isso teve um reflexo importante em todos os países menos desenvolvidos. A infraestrutura viária de Portugal, que hoje deve pouco ao que se tem na Alemanha e França foi construída pós sua entrada na comunidade comum por exemplo. Isso teve um efeito bastante positivo nesses países e que se refletiu em um aumento de dinamismo nessas economias e também em um aumento de comercio intra-regiao do Euro, com as exportações alemãs crescendo muito para os outros países da região. Ou seja, pode-se constatar que houve sucesso se a régua que usamos para medir é a relativa a uma maior integração, linearização das economias e aumento do comércio.
Voltando para o Brasil e Argentina, o que vejo não é uma motivação tão nobre quanto a resolver uma questão de guerra futura, ou realmente aumentar a integração. Porque digo isso? porque do lado argentino o que me parece haver é tentar encontrar uma solução para uma dor especifica que eles tem atualmente que é o de não estarem conseguindo mais financiamento em dólares para o seu comércio. Minha impressão é que eles não estão empolgados com essa moeda comum por conta do comércio em si, mas porque o Brasil iria financiar suas importações.
Não preciso ir muito além em descrever o quanto precária esta a economia Argentina nos últimos anos e com um horizonte muito nebuloso, para dizer o mínimo. Isso retrai o financiamento ao país e certamente dificulta o seu comercio. A China, sabendo disso, tem aumentado consideravelmente sua posição no comércio Argentino já que tem apetite para financiar essa país numa estratégia de aumentar sua presença em detrimentos da presença americana. No caso brasileiro, temos também interesse nisso. Seria bom para o Brasil aumentar o comércio com a Argentina, sem dúvidas, mas de uma maneira que economicamente não fosse ruim para nós, brasileiros.
Será que só melhorar o processo, tirar burocracia, um novo sistema, não resolveria isso? A resposta me parece ser sim. Que dá para fazer isso de uma forma muito melhor. Não são poucas as iniciativas que utilizam Blockchain, por exemplo, para melhorar os processos de trade finance. Tem também a boa tração que o token da agrotoken está tendo na Argentina. No caso desse último há razoes interessantes para se usar ele e poder sair de toda a confusão monetária que a Argentina se encontra, com restrições de transações internacionais e carência de dólares que levam o blue (o equivalente ao mercado paralelo de cambio) a ser negociado muito acima do cambio oficial.
Costumo dizer que com tecnologia hoje dá para fazer melhor 100% do que já temos implementado e aqui não é diferente.
Uma pergunta que martela na minha cabeça desde que essa conversa de moeda comum surgiu essa semana é: realmente precisamos de uma moeda comum? Se questionar sobre se a solução que está encontrando é ou não a melhor possível, é uma das principais para se avaliar o futuro sucesso dela.
Pois é. Para resolver a dor que a Argentina tem, o que ela precisa é de financiamento, e que poderia ser feito em Reais! Se querem mesmo sair do dólar ou não ter que triangular no dólar para importar do Brasil, poderiam muito bem aceitar, ou melhor, aumentar, já que já aceitam em certas situações, o financiamento em Reais. É o melhor dos mundos para eles? Talvez não, dado as taxas de juros altas do Real, mas é uma alternativa. Se aceitam e tem aumentado seus financiamentos em Yuan, porque não aumenta-lo em reais?
Isso pelo lado do Brasil seria muito interessante, já que colocaria o Real em outro patamar no comercio da América Latina e faz muito sentido econômico. Além de ir no sentido de termos uma economia mais aberta. Cabe a questão se queremos como governo financiar ou não essas importações.
Um outro aspecto que temos que levar em consideração é que a criação de uma moeda e sua gestão é, em todo país, incumbência do Banco Central. No caso do Banco Central do Brasil (BCB) essa história de criação de moeda comum, até onde sei, não tem nenhum eco. O BCB está focado na criação do Real Digital e toda infraestrutura para isso e não acredito que desviará um milímetro disso. O real digital pode ajudar e muito no que tange a processo de liquidação e até financiamento do comércio com a Argentina.
Bem, voltando à pergunta que me propus a responder, não acredito que, a essa altura do campeonato, faça sentido termos uma moeda comum entre Brasil e Argentina e deveríamos parar essa discussão por aqui, relegá-la a segundo plano, e focar nos casos de uso e dores reais que nós, brasileiros, temos e que estão sendo tratadas por todas as iniciativas que o BCB vem implementando nos últimos anos. PIX e OPEN FINANCE sendo os grandes exemplos ate o momento, e em breve o REAL DIGITAL se junta a eles.
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