🫤 Bitcoin na crise da meia idade?
Ouro digital, ordinals e smart contracts em rota de colisão?
Nos últimos meses a discussão sobre a rede Bitcoin tem sido intensa. Após anos de pouca novidade nessa rede, que parecia estar confortavelmente estável na posição da rede do “ouro” digital, os últimos meses trouxeram novidade e discussões que reativaram questões sobre o real valor do bitcoin e as narrativas que as sustentam.
A primeira, e que já dei um spoiler acima, é a de que o bitcoin seria um ouro digital. O ouro da nova era, muito mais eficiente, fácil de estocar e tão, ou mais, escasso que o primeiro. Muito se especulou sobre essa função do bitcoin e durante alguns anos a correlação entre o bitcoin e o ouro corroboravam com essa visão. Nos últimos trimestres, mais precisamente após o início de 2022, essa correlação começou a se esvair, fazendo com que em 2022 essa correlação praticamente inexistisse.
Não vou aqui chover no molhado em relação às vantagens que um ativo digital escasso, com custodia individual, fungível e com custo de transação e manutenção baixos tem em relação ao ouro em si. Apesar de, no caso do ouro, termos criado no mercado financeiro títulos securitizados e derivativos que facilitam muito dos pontos acima, a verdade é que para se ter ouro mesmo de verdade, em barra, sem que se necessite de algum intermediário é uma tarefa quase que impossível para valores um pouco maiores. Nesse sentido, ponto para o bitcoin.
Por outro lado, será essa narrativa sustentável no longo prazo? Se for a rede Bitcoin simplesmente utilizada para ser a rede de transação desse ouro digital com o único objetivo de transferência de valor no tempo, ou seja, na ideia de comprar algo que ao menos subirá conforme a inflação, não estaria essa rede fadada ao insucesso? Explico.
O que dá valor para o bitcoin, na minha humilde opinião, é a comunidade apaixonada que ele tem e que o vê como o melhor ativo do mundo, acreditando que ele baterá todos os demais ativos em questão de preço nos próximos anos. Essa comunidade, que inicialmente tinha muito dos conceitos de privacidade e de conseguir fazer algo fora do controle do Estado (sem nenhum viés meu aqui se o Estado é bom ou ruim), passou hoje a ser uma comunidade muito mais ampla do que isso e com muitas pessoas com objetivos e conceitos diferentes. Inclusive, dado os vários episódios recentes onde o Estado conseguiu chegar a pessoas que utilizaram essa rede com objetivos escusos está claro que temos aqui um caso de pseudo privacidade e não de privacidade, o que leva por terra o argumento de privacidade que era muito forte no seu início.
Bem, se o que dá valor ao bitcoin é sua comunidade, vejo como uma necessidade de que essa seja nutrida e continue a ter indicações de que esse é “o ativo” e isso me parece inconsistente com esse único caso de uso.
Vale aqui colocar que algumas decisões feitas pela comunidade do bitcoin também levaram a que essa rede não se colocasse como uma infraestrutura de pagamentos a nível mundial. A essa altura deve estar claro para todos que pagar um café usando essa rede não será um caso de uso viável, seja pelo custo de transação ou pela demora de registro dos blocos (a cada 10 minutos). Lightning network, uma layer 2 do Bitcoin, ajuda muito nisso e tem ganho representatividade, mas, por não ter as stablecoins da rede Ethereum tem ficado para trás quando o conceito é transferência de valores.
E é aí que entra a questão dos inúmeros testes que começaram a serem feitos nessa rede nos últimos meses. Os “ordinals” que trazem o conceito de nfts para a rede Bitcoin tem sido o principal deles. Trouxe um aumento considerável no uso da rede e transações.
Há uma grande discussão de qual o vetor para trazer essas inovações para a rede bitcoin nesse momento e uma das que vejo mais plausíveis é a situação dos mineradores da rede. Nos últimos trimestres a situação deles não foi nada fácil, com custo de energia subindo muito e preço do bitcoin caindo. Muitos enormes ficaram insustentáveis e tiveram que fechar. O curioso é que o hashrate, que é a medida de quanto poder computacional a rede tem, só tem crescido, o que aumenta ainda mais a competitividade entre eles e requer uma necessidade ainda maior de gerar caixa. Bem, os mineradores do bitcoin tem duas fontes de receita, o prêmio em bitcoins por cada bloco minerado e fees cobrados dos utilizadores da rede por transação. Daí quanto mais transação mais receita para eles. Dito isso, eles têm todo o incentivo para que a rede tenha mais casos de uso, novidades, inovações.
Bem, mas essa direção não é sem nenhum obstáculo. Um dos que tenho visto é que para criar os “nfts” da rede bitcoin o que se faz é associar algo, mensagem, foto etc. a um dos satoshis (a menor unidade do bitcoin) e isso cria um dilema interessante, já que esse satoshi passa a não ser mais valorizado como um ativo fungível. É como se você tivesse uma nota de R$50,00 com a assinatura do Pelé. Ela deixa de ser uma nota ordinária de R$50,00 e passa a ter seu valor atrelado ao fato dela ter assinatura de um ídolo do futebol brasileiro. Agora imagina se isso fosse feito em escala, todas as notas de R$50 teriam seu valor diferente. É isso que está acontecendo com os “ordinals” no bitcoin e traz consigo esse dilema entre fungibilidade e não fungibilidade.
Mais recentemente está se consolidando a ideia de ter um padrão para desenvolvimentos de outros tokens da rede Bitcoin (BRC-20, em alusão ao padrão ERC-20 da Ethereum) e abre-se aqui outra linha de discussão sobre termos stablecoins, e por consequência DEFI, crescendo na rede do Bitcoin.
Essa busca por novos casos de uso para a rede bitcoin me parece deveras tardia e vejo muita discussão em sua comunidade sobre sua real necessidade. Estará o Bitcoin flertando para voltar a ser uma infraestrutura de pagamentos mundial? Ou ir além, ser uma plataforma de inovação mundial tal qual a Ethereum? São questões que ficam.
Minha percepção é que qualquer que seja o rumo que essa rede tome, tirando o de se consolidar como uma rede estável e confiável para transferência intertemporal de valores, isso tem que ser feito rápido, já que a consolidação da Ethereum como sendo a principal infraestrutura de inovação da WEB3 já está léguas na frente e acelerando.
Se consideramos que a vida em cripto é como a dos gatos, sete anos vale um de nós, humanos, essa crise da meia idade do Bitcoin vem tardiamente, mas, antes tarde do que nunca!
Long live Crypto! long live Bitcoin!
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Consultas usadas para esse texto:
Bitcoin’s Correlation to Gold Tightened in March Amid TradFi Woes (yahoo.com)
What is Lightning Network in Bitcoin and How Does It Work? (101blockchains.com)
What are Bitcoin ordinals? (cointelegraph.com)
Bitcoin Ordinals Are The Next Big Thing In Crypto (forbes.com)
*texto publicado originalmente na minha coluna da infomoney em 27.jun.2023